Rochas glaciais no semiárido baiano - Formação Bebedouro - Sobre Geologia

19/05/2019

Rochas glaciais no semiárido baiano - Formação Bebedouro

A Chapada Diamantina, na Bahia, é uma das áreas mais ricas para o estudo da geologia em todo o Brasil, de suma importância para o país desde os ciclos do ouro e do diamante, no século XIX. Além disso, é uma das grandes áreas de movimentação turística no estado da Bahia. No entanto, além de suas riquezas minerais, você sabia que a Chapada guarda rochas de origem glacial, cujas estruturas e estudos geológicos explicam muito sobre as mudanças climáticas de grande escala? O artigo de hoje é sobre a Formação Bebedouro, as rochas glaciais do semiárido baiano!


Introdução

A Formação Bebedouro (Oliveira & Leonardos, 1940) é uma formação de origem glacial localizada na Bacia de Irecê, na Chapada Diamantina, estado da Bahia. A Bacia de Irecê é uma bacia sedimentar neoproterozoica (entre 1 bilhão e 541 milhões de anos atrás), e está inserida no contexto de cobertura cratônica dobrada do Supergrupo São Francisco, parte do Cráton São Francisco. Está acumulada principalmente ao longo margens da bacia, e espalhada em sub-bacias, recobrindo uma área de aproximadamente 40.000 km².
Apesar de não representar o litotipo predominante na bacia, que tem quase toda sua superfície preenchida pela Formação Salitre, de origem marinha, a formação representa um alvo de diversos estudos a respeito de glaciações, mudanças climáticas ao longo do tempo geológico e quais as "marcas" deixadas por esses ambientes glaciais. Sua origem é associada às glaciações Marinoana e Stuartiana, e se alinha com outras rochas glaciais que podem ser encontradas no país.

Contexto Geológico

Em aspectos de contexto geológico, a formação está inserida no Cráton do São Francisco, especificamente no Supergrupo São Francisco, onde encontra-se o Grupo Una, composto pela Formação Salitre e pela Formação Bebedouro.

Esquema de contexto geológico da Formação Bebedouro. Fonte: Rosario, Isabela (Sobre Geologia).


Posição estimada dos blocos arqueanos no início da
colisão, com sentido e direção do movimento.
Fonte: Barbosa e Sabaté, 2003.
O Cráton do São Francisco (ALMEIDA, 1967, 1969), é a mais bem exposta e estudada unidade tectônica do embasamento da plataforma sul-americana (BARBOSA et al, 2003), que abrange principalmente os estados da Bahia e Minas Gerais. É uma crosta antiga, pré-Cambriana, originada de um processo chamado de Colisão Paleoproterozoica (entre 2.5 bilhões  e 1.6 milhões de anos), quando quatro grandes blocos arqueanos (entre 3,85 e 2,5 bilhões de anos) colidiram: os blocos Jequié, Gavião, Serrinha e Itabuna-Salvador-Curaçá.
Em geral e de forma (muito) simplificada, as rochas encontradas no Cráton são terrenos metamórficos de alto grau, gnaisses, granitoides e granulitos, e associações do tipo granito greenstone. No Cráton, se destacam destacam três principais conjuntos de rochas pré-cambrianas: Supergrupo Espinhaço, Associação Pré-Espinhaço e Supergrupo São Francisco, sendo que o último é o que está associado à Formação Bebedouro.
O Supergrupo São Francisco (SSF) é uma cobertura cratônica dobrada do neoproterozoico, de margens intensamente deformadas durante o Ciclo Tectônico Brasiliano (entre 450 e 1000 milhões de anos). Segundo o Glossário Geológico da CPRM, esse ciclo foi responsável pela formação de "extensas faixas dobradas nas regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil" (Schobbenhaus, C.).
Esse supergrupo é marcado pela sedimentação de uma plataforma carbonática rasa, associada à sedimentação em ambiente marinho, e glaciogênica. Isso é representado pelo Grupo Una, com as formações Salitre (marinho) e, finalmente, Bebedouro (glacial).

Mapa litológico da Bacia de Irecê. Fonte: Modificado de Alkmim, 2004.

Evolução e Origens

As origens da Formação Bebedouro são ligadas por diversas teorias com glaciações do neoproterozoico. A teoria de uma glaciação continental no paleocontinente São Francisco ganha força tendo em vista a possível correlação entre a Formação Bebedouro, na Bahia, a Formação Jequitai, em Minas Gerais, e a Formação Carrancas, também em Minas Gerais — todas constituídas por diamictitos e outras rochas de origem glacial.
Tanto os diamictitos da Formação Bebedouro quanto os diamictitos da Formação Jequitai e Carrancas estão datados entre aproximadamente 630 milhões de ano, e em outros casos, 750 milhões de anos, o que corresponde aos período de glaciação global Stuartiano e Marinoano (UHLEIN, 2012).
Através do estudo de estruturas glaciais, como estrias, diâmetros de clastos, etc, e análises cronoestratigráficas, foi possível deduzir que haviam três grandes capas glaciais no Cráton do São Francisco há 630 Ma, cada uma com um sentido de deslocamento diferente e responsável por sedimentar as formações Bebedouro, Jequitai e Carrancas. Ainda segundo UHLEIN (2012), acredita-se que a capa glacial mais à norte do cráton se movimentava para sudoeste, e foi responsável pela sedimentação da Fm. Bebedouro.

Mapa em referência às capas glaciais neoproterozoicas do Cráton São Francisco. Fonte: Ulhein (2012).

As teorias de formação das rochas de origem glacial da Fm. Bebedouro têm associação com a Teoria da Terra Bola de Neve, ou Snowball,  já apresentada em artigo do Sobre Geologia. Acredita-se que o degelo com o fim da grande glaciação fez com que o paleocontinente são franciscano fosse inundado, proporcionando um ambiente marinho para deposição das rochas carbonáticas associadas à Formação Salitre, também do Grupo Una, e litotipo predominante na região da Bacia de Irecê.

Caracterização Geológica

A Fm. Bebedouro varia desde 1 m até 70 m de espessura, concentrada especialmente pelas margens da Bacia de Irecê. Por sua origem glacial, apresenta clastos angulosos, de tamanhos e mineralogias variadas, uma vez que a erosão glacial não apresenta nenhum selecionamento do tamanho dos grãos, e o processo de gelo e degelo transporta e deposita clastos de diferentes características em outros ambientes.
Representação esquemática de um exemplo de diamictito
glacial, com matriz argilosa e clastos angulosos.
Imagem por: Rosario, Isabela.
Seu litotipo predominante é o diamictito glacial — segundo o Glossário Geológico da CPRM, trata-se de uma "rocha conglomerática, com fragmentos grandes imersos e dispersos em abundante matriz lamítica, síltico-argilosa, lembrando um tilito." (Winge, M.). Também é possível identificar arenitos e pelitos na formação. (J. T. Guimarães, A. Misi, A. J. Pedreira, et al., 2011).

As estruturas geológicas de origem glacial da formação, e suas características marcantes presentes nos diamictitos, ajudaram em estudos geológicos da área, dando "pistas" de que a região já esteve sob influência de uma glaciação, apesar das características do ambiente serem completamente diferentes na atualidade. 
Uma das estrutura observáveis em trabalho de campo (realizada em fevereiro/2019) é a presença de estrias glaciais. Ao passo que grandes geleiras se movimentam, elas se arrastam sobre as rochas do substrato e criam sulcos na direção de seu movimento. Desse modo, fazendo análises de uma região e cruzando dados de direção, é possível ter uma noção de para qual direção as geleiras se moviam em um determinado período de tempo.

Estrias glaciais em diamictitos da Fm. Bebedouro, com lineações para comparação. Fonte: Rosario, Isabela.

No entanto, estrias glaciais não indicam o sentido do movimento. Esse tipo de informação é importante, por exemplo, porque geleiras transportam diversos clastos enquanto se movimentam, podendo realocar clastos de rochas litificados em outra região para uma área completamente diferente.  Com uma noção da direção geral das geleiras e da geologia de uma região, é possível, por exemplo, inferir o sentido com base na localização atual de rochas características de determinada formação. Segundo KARFUNKEL & HOPPE (1988) e UHLEIN et al. (2007), como dito anteriormente, as geleiras na Bahia se deslocaram no sentido sudoeste.
Em campo, no ponto de coordenadas UTM 8776981m S e 306522m E, foram observadas estrias de direção N 35°/N215°, ou seja, direção nordeste-sudoeste. Assim, as estruturas analisadas nesse ponto não se contrapõem à teoria dos autores supracitados, uma vez que a direção está correta, no entanto, as teorias só puderam ser suportadas à partir de pesquisa mais extensiva.
Outra estrutura muito característica de rochas cuja sedimentação ocorre em ambiente glacial é a drop stone, ou seixo pingado. Esse tipo de estrutura ocorre quando clastos transportados por blocos de gelo em lagos periglacias, originados do processo de degelo, caem sobre o fundo argiloso. Desse modo, esses clastos ocorrem nas rochas sedimentares como, literalmente, seixos pingados.
Processo de formação de estruturas drop stone (seixo pingado). Fonte: Modificado de Guimarães (1996).

Esses seixos podem apresentar diferentes mineralogias, granulometrias, etc. No ponto supracitado, havia a presença de clastos grandes, muitos sub-angulosos e angulosos, de quartzito verde, gnaisses, e algumas rochas máficas dentro da matriz argilosa.


Estruturas tipo seixo pingado em matriz mais argilosa na Fm. Bebedouro. Fonte: Rosario, Isabela (2019).

Também em associação à movimentação de geleiras, identifica-se a estrutura Ferro de Passar, uma estrutura de sedimentação glacial de faces triangulares em clastos, especialmente blocos e matacões. Durante sua movimentação, blocos de gelo erodem clastos, dando-lhes um formato triangular alongado na direção do desse mesmo movimento. No entanto, em razão de estruturas como os seixos pingados, nem sempre esses blocos podem indicar o verdadeiro sentido e direção do movimento, uma vez que podem ter sido pingados de outra geleira na matriz argilosa.

Matacão de formato triangular, demonstrando estrutura glacial Ferro de Passar. Fonte: Rosario, Isabela (2019).

Conclusão

É através de estudos geológicos como os associados à Formação Bebedouro que é possível entender como as geociências podem nos permitir acessar muito mais informações sobre nosso planeta. É difícil que se associa a região do semiárido baiano com um ambiente glacial, geleiras, etc. No entanto, é através dos estudos que se buscam indícios, "pistas" de como funcionam os ciclos na Terra. Sejam os ciclos das rochas, climáticos, biológicos — o método científico e a geologia são formas de desvendar muito mais sobre os lugares onde vivemos, o solo onde pisamos, etc.
Diz o livro e a canção que "o sertão vai virar mar". Diz a geologia: não só já virou, como também já esteve debaixo de gelo. Nas palavras de James Hutton, "o presente é a chave do passado".


Referências

DE ALMEIDA, F. F. M. O CRATON DO SÄO FRANCISCO. Revista Brasileira de Geociências. Volume 7, 1997. Disponível em: http://www.ppegeo.igc.usp.br/index.php/rbg/article/viewFile/11179/10638> Acesso em 20/08/2018
BARBOSA et al. O CRÁTON DO SÃO FRANCISCO NA BAHIA: UMA SÍNTESE.Revista Brasileira de Geociências, Volume 33, 2003. Disponível em: http://www.repositorio.ufba.br:8080/ri/bitstream/ri/2539/1/7596.pdf>Acesso em 20/08/2018
Anais do II SIMPÓSIO SOBRE O CRÁTON DO SÃO FRANCISCO EVOLUÇÃO TECTÔNICA E METALOGENÉTICA. Salvador, Bahia 22 a 31/8/1993. Disponível em: http://sbg.sitepessoal.com/anais_digitalizados/simposiocratonsaofrancisco/II%20SCSF.1993.pdf> acessado em 21/08/2018.
BARBOSA & SABATÉ. COLAGEM PALEOPROTEROZÓICA DE PLACAS ARQUEANAS DO CRÁTON DO SÃO FRANCISCO NA BAHIA. Revista Brasileira de Geociências, Volume 33, 2003. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/2568/1/10323-35270-1-PB.pdf> acessado em 19/08/2018.
<http://sigep.cprm.gov.br/glossario/verbete/brasiliano.htm> acessado em 14/05/2019
BACELLAR, L. de A. Geologia estrutural do Supergrupo São Francisco ao longo da seção regional Coromandel - Três Marias - Conselheiro Mata, MG. 1989. 128 f. Dissertação (Mestrado em Geologia) Departamento de Geologia, Escola de Minas, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 1989. Disponível em: http://www.repositorio.ufop.br/handle/123456789/2110
J. T. Guimarães, A. Misi, A. J. Pedreira, et al. Geological Society, London, Memoirs 2011; v. 36; p. 503-508.
SAMPAIO, Antonio Rabêlo, org. et al. Programa Levantamentos Geológicos Básicos do Brasil - PLGB. Jacobina – Folha SC.24-Y-C, Estado da Bahia. Escala 1:250.000. Organizado por Antonio Rabêlo Sampaio, [Reginaldo Alves dos Santos, Antonio José Dourado Rocha e José Torres Guimarães] – Brasília : CPRM/DIEDIG/DEPAT, 2001.
<http://sigep.cprm.gov.br/glossario/verbete/diamictito.htm> acessado em 14/05/2019


  • Artigo escrito por Isabela Rosario

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